Por que ostentar é moralmente errado?

Lucas Favaro
5 min readJan 15, 2022

Você acha moralmente correto jogar comida fora? Se não, por quê? Eu particularmente acho essa atitude moralmente reprovável devido a uma simples observação: enquanto há pessoas passando fome, outras estão jogando comida fora. Logo, a comida que podia alimentar o faminto está indo pra lata do lixo.

Essa constatação intuitiva carrega implicitamente consigo a premissa de que os recursos são escassos. Caso não fossem, o faminto poderia obter uma refeição com um estalar de dedos ou menos que isso. Como ele não pode, então é preciso remanejar recursos para cobrir a sua necessidade alimentícia. Poderíamos transferir parte do excedente de comida da geladeira do abastado para o prato do faminto; mas, ao invés disso, esse excedente irá apodrecer no lixo — e todos nós percebemos essa situação, daí a nossa reprovação moral ao ato de se jogar comida fora.

Só que geralmente as pessoas param por aí. Não refletem mais minuciosamente sobre essa situação. Caso isso fosse feito, elas poderiam chegar a conclusões pouco intuitivas e até mesmo, aparentemente, absurdas. Elas poderiam concluir, por exemplo, que ostentação é moralmente errado — e exatamente pelo mesmo motivo que jogar comida fora também o é.

A ideia central por trás dessa conclusão é a noção de que os fatores de produção, como tudo na economia, são escassos, de modo que para você produzir algo necessariamente você está abrindo mão de produzir outras coisas. Isso quer dizer que R$10.000 usados para comprar uma bolsa de luxo necessariamente equivalem a R$10.000 não usados para comprar comida para alimentar os pobres.

O altruísmo extremado

Alguém poderia apressadamente concluir que é então moralmente errado ter um estilo de vida minimamente acima do nível de subsistência enquanto houver gente neste nível ou abaixo dele. Isto é: se há uma pessoa que ganha uma renda suficiente para viver pouco acima do nível de subsistência, seria moralmente correto fazer uma transferência de renda dessa pessoa para as demais. Em outras palavras, enquanto houvesse uma pessoa vivendo na miséria, todas as demais deveriam viver nela também.

Eu não chego a esse extremo, devido a três motivos. O primeiro deles é que a pessoa pode ter ascendido de vida por mérito próprio, de modo que uma redistribuição de renda dela para as demais que não se esforçaram tanto quanto ela poderia ser injusta, dados certos pressupostos morais. O segundo é que o aumento de renda de todos os membros da sociedade depende fundamentalmente do acúmulo de capital, melhoria tecnológica e, principalmente, da melhoria na eficiência produtiva. Mas certamente não haveria acúmulo de capital e melhoria tecnológica se todos vivessem constantemente no nível de subsistência. Além disso, a melhoria na eficiência depende de uma boa institucionalidade, que garanta regras sociais e econômicas estáveis, e certamente a redistribuição de renda constante não se adequa a esse cenário. Ou seja, no longo prazo, a melhor forma de fazer alguém prosperar é permitindo que seus vizinhos prosperem.

Com isso eu quero dizer que a mudança do regime malthusiano de crescimento para o regime moderno ocorre de maneira gradual no espaço; primeiro em uns lugares, depois em outros. Se quiséssemos impedir a transição de regimes com o argumento de que ela precisa ocorrer em todos os lugares ao mesmo tempo, então ela nunca ocorreria, e todos ficariam presos na armadilha malthusiana para sempre.

O terceiro motivo é, certamente, o mais forte de todos. Não é racional você doar tudo o que você possui e ser um altruísta ao extremo devido à incerteza moral. Perceba que o altruísmo extremado, isto é, o ato de doar tudo o que você tem enquanto houver alguém passando necessidade, parte da ética utilitarista, que diz, grosso modo, que a ação mais ética a se tomar é aquela que maximiza (minimiza) o bem-estar (sofrimento) agregado, seja lá o que isso quer dizer. Mas quem disse que o utilitarismo está certo com certeza?

Para você tomar uma ação tão radical quanto a de doar todos os seus bens e viver como um mendigo apenas porque outras pessoas também vivem dessa forma você deve estar muito certo (muito mesmo!) de que a maximização do bem-estar agregado é sempre e exclusivamente a ação ética a se fazer. Parodiando Carl Sagan, que disse que alegações extraordinárias requerem evidências extraordinárias, também ações extraordinárias requerem evidências (ou melhor, crenças) extraordinárias. O motivo disso é que, como o seu bem-estar vai diminuir muito ao aplicar o altruísmo extremado em sua vida, então a sua crença de que essa é a ação correta a se fazer deve ser muito forte.

O altruísmo moderado

Feito essa digressão necessária, creio estar superado o argumento da imposição moral da transferência onipresente de renda e recursos. O meu argumento é bem mais soft: tenha um nível de vida materialmente confortável, mas não exagere na opulência enquanto o seu vizinho passa fome.

Cabe ressaltar que a ostentação de bens materiais supre uma necessidade primitiva de diferenciação no status social perante seus pares para atrair parceiros sexuais e, assim, deixar descendentes. Nos tempos da caça e coleta, a ostentação transmitia a seguinte mensagem:

Olha como eu tenho bastante bens materiais e, assim, grande capacidade de sustentar a minha prole. Portanto, se você copular comigo, nossos filhos terão maiores chances de sobreviver do que a média.

Óbvio, essa “mensagem” não era passada, tampouco lida, de maneira intencional, assim como não se pode dizer que as abelhas constroem os alvéolos da colméia no formato hexagonal (que é justamente o formato que maximiza o espaço da colmeia e minimiza a quantidade de cera) de maneira intencional. Essa é uma das grandes maravilhas da evolução: ela pode produzir comportamentos complexos sem a intencionalidade do agente dotado do comportamento.

Essa é a explicação do porquê, em termos evolutivos, a ostentação existe. Mas não podemos concluir portanto que só porque a ostentação é “natural” então ela é moralmente correta. Fazer isso seria cair na falácia naturalista. O fato de um comportamento ser natural não o justifica do ponto de vista ético.

É justamente o caráter ético da ostentação que eu estou aqui botando em cheque, em face da constatação de que os recursos são escassos e da premissa moral de que doar é correto.

Então quanto você deveria doar da sua renda? 10%. O motivo do porquê esse número e não outro está nesse excelente texto de Scott Alexander (uma tradução desse texto foi feito pelo site Neoliberais aqui). Me eximo de escrever os argumentos aqui porque eu não conseguiria colocá-los de uma forma tão eloquente quanto Scott e porque fugiria aos objetivos deste texto.

Doando 10%, ou seja, sendo um “altruísta moderado” (moderado para os padrões da renda total que você recebe, mas extremo para os padrões de doação da sociedade atual), você poderá evitar a ação irracional de se perder em convicções que podem não estar corretas, se tornando um mendigo/altruísta extremado, e, ademais, também poderá evitar a ação imoral de ostentar enquanto há pessoas passando fome.

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Lucas Favaro

Entusiasta do transumanismo, do altruísmo eficaz e do globalismo.