Uma crítica à existência de Deus em um tratado de economia
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Você sabia que existe um subcapítulo inteiro de um tratado de economia disparando críticas (bem fundamentadas, por sinal) a argumentos teológicos?
Isso pode parecer algo completamente deslocado do escopo de um livro de economia, porém não é, pois tais críticas se encontram na seção em que o autor fundamenta epistemologicamente seus argumentos econômicos subsequentes. E tal fundamentação requer a caracterização de todas as nuances de um conceito: o conceito de ação.
Com isso eu já dei a dica de qual livro se trata. Não é outro senão “Human Action”, de Ludwig von Mises. A crítica em questão se encontra presente no subcapítulo intitulado “The Limitations of Praxeological Concepts”, do capítulo “The Epistemological Problem of the Sciences of Human Action” (segundo capítulo do livro).
Nesse capítulo em específico, Mises realça muitos aspectos da categoria “ação”, tratando, como o nome do capítulo sugere, de problemas epistemológicos da ação humana. Dentro disso, o autor contrasta a categoria da “ação humana” com a da “ação divina”, e acaba tecendo críticas interessantes a respeito da chamada ação divina que eu, particularmente, nunca tinha lido/ouvido antes. Vou chamar nesse texto tais argumentos de “a crítica de Mises”.
As críticas são as seguintes:
1. É contraditório imaginar a propriedade de onipotência em um agente
Se um agente pode fazer tudo, então ele já teria o feito numa única vez há muito tempo atrás. Nas palavras de Mises:
“Action can only be imputed to a discontented being, and repeated action only to a being who lacks the power to remove his uneasiness once and for all at one stroke. An acting being is discontented and therefore not almighty. If he were contented, he would not act, and if he were almighty, he would have long since radically removed his discontent.” (p. 69)
Ademais, o conceito de ação pressupõe o uso de “meios” para realização de um “fim”. Porém, o próprio conceito de meio perde sentido para alguém onipotente, dado que onipotência, por definição, é ação irrestrita, ao passo que meio, por definição, é restrição na ação. Novamente, nas palavras do próprio:
“Omnipotence would mean the power to achieve everything and to enjoy full satisfaction without being restrained by any limitations. But this is incompatible with the very concept of action. For an almighty being the categories of ends and means do not exist. He is above all human comprehension, concepts, and understanding. For the almighty being every “means” renders unlimited services, he can apply every “means” for the attainment of any ends, he can achieve every end without the employment of any means.” (p. 69–70)
2. É contraditório imaginar a propriedade de onipotência e onisciência em um mesmo agente
Como dito acima, apenas a propriedade de onipotência presente em um agente já é contraditória. Porém, pode-se superar tal crítica imaginando que um ser onipotente age apenas uma única vez (nas palavras de Mises, “once and for all at one stroke”), e depois disso nunca mais. Portanto, a crítica só é válida quando se refere à existência de um ser onipotente que age mais de uma vez.
Agora, suponha que um ser onipotente tenha agido uma única vez e depois não mais. Pois bem, se for esse o caso, então por definição tal ser não é onisciente. Isso porque, se o fosse, ele não agiria sequer uma única vez.
Pois veja: se um ser conhece tudo — que é a definição de onisciência — então ele não age. O conceito de ação pressupõe a ignorância do sujeito que age em relação a estados futuros da natureza. Esse é o próprio motivo pelo qual alguém age: para sair de um estado da natureza menos favorável a si para alcançar um estado da natureza mais favorável. Porém, se o sujeito já sabe qual será o estado da natureza no futuro, não há motivos para que ele aja. Portanto, se alguém conhece todos os estados da natureza (tanto passados quanto futuros) — ou seja, alguém onisciente —, então esse alguém não age nem sequer uma única vez. É, para todos os efeitos, um ser inerte, não ativo, vegetativo.
“Are omnipotence and omniscience compatible? Omniscience presupposes that all future happenings are already unalterably determined. If there is omniscience, omnipotence is inconceivable. Impotence to change anything in the predetermined course of events would restrict the power of any agent.” (p. 70)
Suponha que Deus estivesse fadado, pré-programado, a criar o universo. Nesse caso, ele até poderia ser onisciente: ele poderia saber que estaria fadado a criar o universo. Porém, com isso, ele não seria mais onipotente, dado que ele se vê obrigado a fazer algo restrito (criar o universo), não tendo liberdade para desviar de sua ação. Na verdade, ele sequer seria um agente, pois o conceito de ação pressupõe livre-arbítrio, pressupõe volição. Um ser pré-programado a fazer o que faz não é um agente — pelo menos não no sentido misesiano do termo.
Resumo
- Se um ser age, então ele não é onisciente.
- Se um ser é onisciente, então ele não é um agente (esse é o modus tollens da afirmação anterior).
- Se um ser age mais de uma vez, então ele não é onipotente.
Portanto, um ser onisciente e onipotente é necessariamente um ser inerte que nunca age uma única vez.
A crítica de Mises é mais profunda do que parece
Ao meu ver, essa crítica é ainda mais forte do que a crítica esboçada no “problema do mal”. Sumarizando esta última, ela diz que é impossível existir um agente que seja ao mesmo tempo onisciente, onipotente e todo-bondoso. A forma mais comum pela qual os teístas se defendem dessa crítica é puxando da manga a carta do livre-arbítrio. Se essa é uma boa superação do problema do mal ou não é uma questão que eu não irei adentrar. O que eu quero salientar aqui é outra coisa: mesmo que a carta do livre-arbítrio consiga superar o problema do mal, ela não consegue superar a crítica de Mises.
Isso porque a crítica de Mises se aplica à existência mesma de um Deus que criou o universo, sendo este um universo em que existe livre-arbítrio ou não. Suponha que Deus tenha criado um universo no qual existe livre-arbítrio (o nosso universo, segundo os teístas). Mesmo sendo esse o caso — e tendo sido superado o problema do mal, portanto—, a crítica de Mises ainda vale, pois o ato mesmo de Deus criar um universo já implica que Deus é um agente — e sendo um agente, ele não é onisciente.
Possível resposta à crítica
Perceba que as críticas do autor não se referem à existência de um ser onisciente e onipotente per se, mas sim à existência de um agente onisciente e onipotente. Caso tal ser exista, todos os conceitos que servem ao expediente epistemológico de entender o conceito de ação (tais como os conceitos de meios e fins) não são aplicados a ele. Esse ser está, propriamente, em um “mundo” no qual a filosofia kantiana de Mises não dá conta de explicar.
A crítica serve apenas àqueles que acreditam na existência de um “absolute and perfect being, unchangeable, omnipotent, and omniscient, and yet planning and acting, aiming at ends and employing means for the attainment of these ends” (p.69).
Mas a crítica não se aplica à ideia de que tal ser perfeito está em um mundo no qual não existe tempo, por exemplo, pois o próprio conceito de ação pressupõe a existência de tempo. Um autor como William Lane Craig diz que Deus está “fora do tempo”. Como ele consegue conciliar essa ideia com a ideia de um Deus ativo (um Deus bíblico) é algo que não faço a menor ideia (provavelmente essa é uma falha minha e não dele, pois eu nunca estudei esse autor).
O fato é que a existência de um Deus ativo/agente requer uma epistemologia e uma metafísica muito diferentes daquelas da filosofia kantiana na qual Mises se assenta. Se filósofos teístas (Craig, Plantinga, etc.) conseguem oferecer tais teorias epistemológicas e metafísicas é algo que está fora do meu interesse, pelo menos nesse momento.